====== Filebo 42c-46b — Crítica da teoria do prazer como ausência de dor ====== Sócrates – Depois disso, vejamos se no rasto de mesmo raciocínio não iremos encontrar prazeres e dores ainda mais falsos do que os parecem existir e existem nos seres vivos. Protarco – Quantos são, e do que maneira os encontraremos? XXVI – Sócrates – Repetidas vezes afirmamos que, quando a natureza de qualquer ser se corrompe, por concreções ou dissoluções, repleção ou esvaziamento, crescimento ou diminuição, ocorrem dores, mal-estar e sofrimento, e tudo o mais a que damos designações parecidas. Protarco – É de fato; já tratamos várias vezes desse ponto. Sócrates – E quando tudo retorna à sua natureza primitiva, concluímos entre nós mesmos que semelhante volta constitui prazer. Protarco – Certo. Sócrates – E que acontece, quando nosso corpo não passa por nenhuma dessas transformações? Protarco – E quando ocorre semelhante estado, Sócrates? Sócrates – Essa pergunta, Protarco, é fora de propósito. Protarco – Como assim? Sócrates – Porque não me impede de apresentar-te a mesma pergunta de antes. Protarco – Qual? Sócrates – Se tal estado não ocorresse nunca – é o que sempre afirmei – que aconteceria necessariamente conosco? Protarco – Queres dizer: se o corpo não mudasse em nenhum sentido? Sócrates – Isso mesmo. Protarco – Nessas condições, Sócrates, é evidente que ele não sentiria prazer nem sentimento de qualquer espécie. Sócrates – Falaste admiravelmente bem. Mas decerto admitirás, segundo penso, que teremos sempre de passar por alguma modificação, conforme dizem os sábios, pois tudo não pára de mover-se para cima ou para baixo. Protarco – Sim, é o que dizem, não me parecendo que falem aereamente. Sócrates – Como o poderiam, se não lhes falta autoridade para falar? Porém preciso fugir dessa questão, que se intrometeu em nosso discurso. Tenciono escapar por este lado; vê se te decides acompanhar-me em minha fuga. Protarco – Indica a direção. Sócrates – Vá que seja assim mesmo, é o que lhes diremos. E agora me responde: será que os seres vivos sempre têm consciência do que se passa com eles, não se processando nenhum crescimento sem que o percebamos, nem qualquer outra alteração da mesma natureza, ou acontecerá precisamente o contrário? Protarco – O contrário, sem dúvida; quase todos os fenômenos desse tipo nos escapam. Sócrates – Nesse caso, não estava muito certo o que dissemos há pouco, que as modificações num ou noutro sentido nos proporcionam sofrimentos ou prazeres. Protarco – Sem dúvida. Sócrates – O melhor e mais seguro seria afirmar o seguinte. Protarco – Que será? Sócrates – Que as grandes mudanças nos causam prazer e sofrimento, enquanto as medianas ou mínimas, nem uma coisa nem outra. Protarco – Essa afirmativa, Sócrates, é mais certa do que a primeira. Sócrates – A ser assim, vai reaparecer o gênero de vida a que há pouco me referi. Protarco – Que gênero de vida? Sócrates – O que consideramos estreme de sofrimentos e de alegria. Protarco – Só dizes a verdade. Sócrates – Nessas bases, admitamos três espécies de vida: uma agradável, outra dolorosa, e uma terceira, que não será nem uma coisa nem outra. Tudo isso, como te parece? Protarco – Eu? Apenas isso mesmo: que há três gêneros de vida. Sócrates – Nesse caso, a ausência de dor não é a mesma coisa que sentimento de prazer. Protarco – Sem dúvida. Sócrates – Então, sempre que ouves alguém afirmar que não há nada agradável como passar a vida sem sofrimentos, que te parece que essa pessoa quer dizer? Protarco – Eu, pelo menos, entendo que ela considera agradável a ausência de dor. Sócrates – Imagina três coisas que melhor te parecerem e apliquemo-lhes belos nomes: uma será ouro; outra, prata; e a terceira, nem ouro nem prata. Protarco – Vá que seja. Sócrates – Concebe-se que esta última, que não é nem uma coisa nem outra, venha a ser outro ou prata? Protarco – Como fora possível? Sócrates – O mesmo se passa com o gênero mediano de vida, que jamais poderá ser tido, ou sequer imaginado, como agradável ou doloroso; pelo menos de acordo com o são raciocínio. Protarco – É evidente. Sócrates – No entanto, companheiro, conhecemos muita gente que fala e pensa dessa maneira. Protarco – Muita, realmente. Sócrates – Acreditarão, porventura, que sentem prazer quando a dor não os oprime? Protarco – É o que dizem. Sócrates – Então, é que imaginam sentir prazer; do contrário, não se expressariam daquele modo. Protarco – Parece. Sócrates – Têm, por conseguinte, uma concepção falsa do prazer, a estar certo que prazer e ausência de sofrimento são de natureza diferente. Protarco – Como realmente são.